Opinião
Desprezo cotidiano pela vida nas periferias
Centenas de mortes em uma única operação policial. Foi esse o saldo da chamada “megaoperação” contra o Comando Vermelho no Complexo do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro. Cento e vinte e uma pessoas mortas. Cinquenta corpos recolhidos pela própria população, enfileirados em uma imagem captada por drone — uma imagem de guerra. Uma chacina.
O impacto foi imediato. O país reagiu, às manchetes se multiplicaram, e os noticiários seguem desdobrando o fato, tentando entender mais um capítulo dessa tragédia brasileira. Mas, por mais que pareça um evento isolado, essa guerra é antiga. Ela não começou agora — e tampouco terminou ontem.
No Brasil, há uma guerra que não é declarada, mas que mata diariamente. Mata mais do que os conflitos que acompanhamos de longe, como a ofensiva de Israel contra o Hamas ou a guerra entre Rússia e Ucrânia. A diferença é que essa guerra acontece dentro das nossas cidades, em nossas fronteiras invisíveis.
Ela tem raízes profundas. É o resultado de séculos de desprezo pela vida nas periferias, territórios historicamente marginalizados e tratados como corpos estranhos ao país. Nessas regiões, a morte não causa espanto — ela é parte do cotidiano. Criou-se a ideia de que a periferia é o “tumor” do Brasil, mas nunca nos perguntamos qual doença social e histórica gerou esse tumor. E é essa doença — o desprezo — que continua a matar.
O desprezo pela vida não está apenas no Rio de Janeiro. Ele está também onde vivemos, nas cidades médias, nas periferias menos televisadas, nos bairros esquecidos, nas esquinas por onde passamos todos os dias.
Se nos chocamos com as 121 mortes no Complexo do Alemão, deveríamos também nos indignar com as mortes simbólicas e reais que acontecem à nossa volta — com as vidas invisíveis que ignoramos, com as populações que desprezamos, com os rostos que escolhemos não ver.
Cada ato de indiferença, cada gesto de exclusão é uma pequena chacina. Uma morte em conta-gotas.
A tragédia do Rio de Janeiro é um marco, um grito de dor que reverbera em todo o país. Mas há outras tragédias, silenciosas e contínuas, que nós mesmos ajudamos a sustentar. Elas não estampam manchetes, mas corroem o tecido social e moral de nossa convivência.
A violência que se abate sobre as periferias é também um espelho do que permitimos acontecer todos os dias — na omissão, na indiferença, na naturalização do sofrimento do outro.
E talvez essas pequenas tragédias, que alimentamos sem perceber, sejam ainda mais destrutivas do que as que nos chocam quando aparecem nos noticiários.
Refletir sobre o que acontece no Complexo do Alemão é também refletir sobre nós mesmos — sobre o país que somos e o que escolhemos ignorar.
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